top of page

Endogamia, o preço de ter um sangue azul

​

Para quem nunca ouviu falar, endogamia ou consanguinidade é definido como a união entre indivíduos geneticamente semelhantes. Quando os progenitores de um ser vivo, isto inclui todos que se reproduz sexuadamente, possuem um ou mais ancestrais comuns, isto é, são parentes, diz-se que ele é consanguíneo ou endogâmico. O resultado desse acasalamento é o aumento da homozigose, o que acaba resultando em perda de vigor, assim como na perda da variância genética, à medida que aumenta o parentesco.

 

Casos assim na família Monteiro de Castro ocorrem com tamanha frequência! O segundo barão de Congonhas Lucas Antônio, em suas primeiras núpcias, casou-se com Helena, sua prima, por ser filha de seu tio materno, e sua sobrinha, por ser filha de sua irmã. Sim, seus sogros eram seus parentes próximos! Este costume corriqueiro, de se casar primos com primos, foi herdado pela realeza europeia, estas, espelhadas nas escrituras bíblicas.

O matrimônio endogâmico é uma verdadeira tradição na narrativa do texto bíblico, que impõe, ou ao menos recomenda, o casamento no interior do clã, ou seja, o cônjuge deve ser encontrado no seio do parentesco, ou mesmo da linhagem. E isto perdura até os dias atuais! Nas narrativas patriarcais temos a princípio o próprio Abraão, que se revela casado com sua meia-irmã patrilateral, Sarah (Gn 20:12). Apesar disso, o que o texto vai apresentar nos relatos seguintes, sugere que o casamento endogâmico ideal é realizado entre primos, como é o caso de Isaac e Rebeca (neta do irmão de Abraão, conforme em Gn 24:15). Podemos citar N casos bíblicos. Sociologicamente falando, esses casamentos dentro do clã conservam a linhagem, garantem a preservação da identidade e impedem a dispersão dos bens familiares, especialmente no casamento com a prima cruzada matrilateral, já que se analisarmos em última instância, permite que o filho recupere mesmo que em parte, os bens saídos do patrimônio por ocasião do casamento do pai.

Todavia, a repetibilidade dos genes ao longo de vários casamentos consanguíneos em uma genealogia pode trazer sérios danos à saúde dos seus descendentes. A isto, chamamos de depressão endogâmica. É um quadro caracterizado pela diminuição no sucesso reprodutivo das espécies que praticam a endogamia, já que essa não é a forma mais vantajosa de garantir uma prole evolutivamente apta.

 

Ao longo das gerações, o próprio processo de seleção natural fez com que os organismos encontrassem maneiras que excluíssem os alelos deletérios das linhagens, pois esses não expressam características benéficas aos indivíduos. Ao entrarem em um panorama reprodutivo baseado na endogamia, esses indivíduos estão aumentando as chances de os alelos deletérios, que são recessivos, passarem a predominar na população ou meta-população, o que inviabiliza a espécie em curto, médio ou longo prazo. Esse quadro pode ser qualificado pela diminuição de indivíduos sobreviventes ao parto, e às condições de vida no meio, que levam em conta competição intra e interespecífica, resistência imunológica e vários outros fatores.

Um exemplo marcante, é da família do naturalista britânico Charles Darwin. Ele chegou a ter dez filhos com sua mulher, Emma Wedgwood, entre 1839 e 1856, e, como é natural, se preocupava com a saúde de sua prole. Porém seus medos iam além das preocupações normais de um pai, já que partiam de um certo sentimento de culpa: um pecado original próprio que podia causar doenças em seus filhos ou, pelo menos, torná-los mais frágeis do que o normal. Charles e Emma eram primos de primeiro grau. A figura mais relevante da família Darwin sabia que a consanguinidade deteriora as gerações futuras, sejam plantas ou animais. Agora sabemos que seus temores eram justificados: sua linhagem foi marcada por mortes prematuras e infertilidade devido à endogamia. O problema não surgiu unicamente no leito de Charles e Emma. Os Darwin e os Wedgwood se uniram durante muitas gerações, o que fez com que o naturalista e sua esposa tivessem muitos outros parentescos além de serem primos de primeiro grau.

Montagem de uma foto de Charles Darwin e seu primogênito William, com sua mulher, Emma, abraçando Leonard.

“Atualmente há uma certa unanimidade sobre o fato de que a consanguinidade afeta a fertilidade e a esterilidade nos humanos, o problema é que ainda não foi possível concretizar de que maneira. Na dinastia Darwin descobrimos que a culpa de casais consanguíneos terem menos filhos do que os casais não consanguíneos não são do casal em si, mas dos homens consanguíneos”, afirma Francisco Ceballos, geneticista da Universidade de Santiago de Compostela.

 

O resultado de sua análise mostra que os homens Darwin-Wedgwood fruto da endogamia tiveram 1,2 filho por mulher em comparação à média de 2,1 dos não consanguíneos, depois de descartar outros fatores demográficos ou socioeconômicos. Dos filhos de Charles Darwin, três não passaram dos 10 anos e outros três não conseguiram ter herdeiros.

Voltando à realeza, feitos por interesse político também, os casamentos entre famílias reais europeias uniram parentes próximos e geraram descendentes com problemas físicos e mentais. Citarei como a endogamia devastou a dinastia Habsburgo na Espanha às loucuras da casa de Bourbon em Portugal:

 

Habsburgo

 “Conta-se que, ao pisar na Espanha pela primeira vez, Carlos V, do Sacro Império Romano-Germânico, ouviu o grito de um homem do povo: “Majestade, feche a boca, pois as moscas deste país são muito insolentes”. Corria o ano de 1517, e o abusado camponês, se existiu, percebeu de cara um defeito no nobre nascido na cidade de Gante (atual Bélgica) que vinha assumir o trono espanhol. Carlos V (e I da Espanha), que lá estava como herdeiro de seus avós maternos, Isabel I de Castela e Fernando II de Aragão, os chamados Reis Católicos, era dono de um queixo descomunal. Tanto que não conseguia unir os lábios e impedir o acesso de possíveis insetos voadores, ficando com o ar apalermado, que teria motivado o gracejo do petulante plebeu.

Pintura de Carlos II da Espanha

Seu feio trineto Carlos II da Espanha, além da coroa, levou de brinde a deformação óssea da face conhecida como prognatismo – a mandíbula se projeta em relação ao maxilar e o lábio inferior se torna mais saliente. No caso de Carlos II, o queixão acarretava dificuldades de mastigação e de fala. Os Carlos, você deve ter reparado, partilhavam de um defeito genético. Estigma marcante durante séculos nos Habsburgos, a poderosa dinastia originária da Suíça, à qual pertenciam os dois monarcas, o prognatismo ficou tão identificado com a família que é conhecido também como mandíbula ou lábio de Habsburgo ou de Áustria.

 

Os rostos desses e de outros soberanos – Filipe 4º da Espanha, pai de Carlos II, por exemplo – estão bem documentados em pinturas. Considerada a hipótese de que os pintores de corte – mesmo um mestre como Diego Velázquez – amenizavam os traços para não irritar seus retratados, é possível imaginar queixadas mais avantajadas ainda.

O culpado de tudo isso – o primeiro Habsburgo prognata – foi possivelmente Ernesto I da Áustria (1377-1424). Se a praxe fosse buscar gente de outras origens para os casamentos, o gene queixudo de Ernesto encontraria novos DNAs e provavelmente sumiria em sua descendência. Acontece que os Habsburgos, como outros nobres, apreciavam matrimônios com parentes, a endogamia. Era um jeito de preservar o sangue azul e estabelecer alianças políticas. A falta de “sangue novo” na herança genética, no entanto, perpetuava (e acentuava) características físicas indesejáveis, provocava o surgimento de doenças congênitas e aumentava a mortalidade infantil naquelas famílias.

​

Geneticistas espanhóis traçaram a árvore genealógica de Carlos II e constataram que sua carga genética era equivalente à de um incesto entre irmãos ou entre pais e filhos. “Provavelmente, o gene do prognatismo atuava combinado com outros, o que fazia com que alguns dos Habsburgos apresentassem a má-formação e outros não”, afirma Jaime Anger, cirurgião plástico do Hospital Israelita Albert Einstein de São Paulo.

​

O prognatismo aberrante não era a única desgraça de Carlos II, sugestivamente alcunhado de “o Enfeitiçado”. Só começou a andar aos 4 anos e tinha desarranjos intestinais e febres, além de certo atraso mental. De todas as mazelas, nada superou, para fins dinásticos, sua incapacidade de gerar um herdeiro em seus dois casamentos – Carlos seria estéril. Quando morreu, aos 38 anos, aparentava uma idade muito mais avançada.” – Pedro Procópio, Aventuras na História (UOL)

Isabel II, com seu esposo Francisco de Bourbon

Bourbons

“Características como elevado apetite sexual e loucura foram associadas aos Bourbons ao longo do tempo. O rei Fernando VI  da Espanha (1713-1759) teria transado com a mulher agonizante, Bárbara de Bragança. Seu meio-irmão e sucessor, Carlos III, era obsessivo: fazia tudo sempre exatamente nos mesmos horários. A mandíbula de Áustria, em virtude de ancestrais comuns, também se fez presente no rosto dos Bourbons.

Como os Habsburgos, eles também se casaram muito entre si. Uma das histórias mais curiosas está ligada à rainha Isabel II da Espanha (1830-1904) e ao seu marido, o rei consorte Francisco I (1822-1902). Ambos eram primos em dose dupla – o pai dele era irmão do pai dela, e a mãe dele era irmã da mãe dela. Acontece que Francisco era gay, e Isabel começou a pular a cerca. Nos salões e nas ruas de Madri, Francisco tinha o apelido de Paquita. Existe até a possibilidade de os 11 filhos de Isabel (só 5 chegaram à idade adulta) não serem de Francisco. Por essa tese, o rei Afonso XII, bisavô do rei atual, Juan Carlos I, seria fruto de um caso de Isabel com o capitão Enrique Puigmoltó. Se assim foi, as traições de Isabel serviram como antídoto contra os males da endogamia bourbônica.

Tempos depois a mandíbula de Habsburgo já havia cruzado o oceano e chegado ao Brasil. Produto de casamentos entre parentes e com diferentes sobrenomes dinásticos nas costas: Bragança, Orleans, Habsburgo, Bourbon, o nosso dom Pedro II (1825-1891) também foi prognata. Seu avô, dom João VI, era filho de um tio com uma sobrinha. Seu pai, dom Pedro I, e sua mãe, a imperatriz Leopoldina (filha do imperador do Sacro Império Romano-Germânico e, portanto, Habsburgo de alta linhagem), eram primos em segundo grau. João, Pedro e Leopoldina tinham o queixo deslocado para a frente. Em ‘As Barbas do Imperador’, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz defende que Pedro II deixou os pelos crescerem no rosto para parecer mais velho e respeitável. Reza outra lenda que o visual servia mesmo para camuflar o queixão.” – Pedro Procópio, Aventuras na História (UOL)

 

A endogamia, todavia, não se restringiu somente às monarquias europeias. São encontrados milhares de exemplos no Egito antigo, onde havia casamentos entre irmãos. Cleópatra casou-se com dois, o Ptolomeu XIII e o XIV. Em Roma, ocorriam enlaces entre primos, caso de Nero e Claudia Octavia. Há indícios de que os incas na América do Sul também casavam irmãos e irmãs sem drama de consciência. Ainda que haja nobres que gostem de se casar entre si, existe uma diversificação bem maior de fontes conjugais:

 

  • O rei Eduardo VIII, em dezembro de 1936, abdicou do trono britânico para se unir a Wallis Simpson, uma americana duas vezes divorciada. Quem ficou no seu lugar foi George VI, o gago retratado no filme O Discurso do Rei e pai da rainha Elizabeth II.

  • Filipe de Bourbon, filho de Juan Carlos I da Espanha e da rainha Sofia, casou-se em 2004 com a plebeia Letizia Ortiz.

  • O príncipe William, filho de Charles e Diana, encontrou nos corredores da faculdade sua carametade, Kate Middleton, apesar de que através de pesquisas recentes, genealogistas afirmam que ambos são descendentes de Thomas Leighton, que foi soldado, diplomata e governador de uma província inglesa no final do século XVI, e morreu há exatamente 400 anos, em 1610.

Kate e William com seus filhos: George, com 4 anos e Charlotte, com 2 anos, em cerimônia de aniversário de Elizabeth II em 4 de setembro de 2017

A outrora fechada família europeia de monarcas, de uns tempos para cá, é capaz até de aceitar em seu seio um descendente do lendário e irreverente camponês espanhol. Aquele do mosquito na boca do rei citado por Pedro Procópio, raleando, portanto, o famoso sangue azul que carrega em si várias enfermidades da consanguinidade exacerbada ao longo da árvore genealógica.

​

Novamente levanto o seguinte questionamento: Qual o preço da endogamia na genética de seus descendentes? Eu, Breno Henrique Booz Carvalho Corrêa, descobri um primo através do teste de DNA autossômico, Lucas Abreu Carneiro Mitraud de Carvalho. Além dos sobrenomes iguais, o teste acusou que compartilhamos 110,4 centimorgans de DNA em nossos cromossomos! São 5 segmentos dispostos nos cromossosmos 2, 5, 10, 12 e 22, totalizando quase 2 % de sequências genéticas iguais. O segmento do cromossomo 5 mais a esquerda contabiliza um segmento triangular: vide artigo Segmento Triangulado em testes de DNA autossômico.

Sem Título-1_edited.jpg

De acordo com o Projeto Centimorgan (BETTINGER, 2016) éramos para ter um trisavô em comum, de 0 a 156 cM compartilhados para essa distância em um ascentral comum. Mas pasmem... Lucas e eu possuímos 6 ancestrais em comum, conforme imagem abaixo. Descendemos de Pedro Pereira Lima e Brízida Maria de Oliveira, o Alferes José Justiniano Rodrigues da Silva e Maria Dulcinéia da Silva, e por último o Capitão Francisco Rodrigues de Carvalho e Anna Rosa da Cunha, que foram lavradores e dono da Sesmaria da Matta, em Itabira do Campo. Tanto eu quanto Lucas possuímos dois antepassados que são descendentes de Francisco Rodrigues de Carvalho e que casaram entre si. Meus bisavós maternos, Francisco Affonso de Carvalho e Luzia Mathildes de Carvalho são primos de segundo grau: os avós paternos deles são irmãos (Antônio Rodrigues de Carvalho irmão de Francisco Rodrigues de Carvalho; Maria Cândida da Silva irmã de Delminda Justiniana Rodrigues da Silva). Os avós paternos de Lucas, José Mitraud de Carvalho e Maria de Lourdes Carvalho, são primos de terceiro grau, onde os bisavós de seus avós, são irmãos (Antônio Rodrigues de Carvalho irmão de José Rodrigues de Carvalho). Minha bisavó Luzia Mathildes é irmã do bisavô do Lucas, o Francisco Rodrigues de Carvalho! Sendo minha mãe descendente de José Justiniano e Maria Dulcinéia duas vezes, eu e Lucas somos primos 7 vezes!

A principal consequência de 2 indivíduos compartilharem um ou mais ancestrais comuns é que eles poderão portar réplicas, ou seja, cópias idênticas de um ou mais genes presentes nesses ancestrais. E, se esses indivíduos se acasalarem, poderão passar tais réplicas para a sua prole, gerando descendentes autozigotos, quer dizer, com duas cópias idênticas de um mesmo gene que estava presente nesses ancestrais comuns. Mesmo depois de algumas gerações a endogamia é perceptível até mesmo nos testes de DNA para genealogia e as chances de genes recessivos se combinarem, gerando doenças autossômicas, são significativas!

bottom of page